18 de abril de 2018
- sevenweeks3
- 11 de jun. de 2018
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Hoje conversando com o meu marido, contei que estou escrevendo meus sentimentos, como uma forma de desabafar enquanto não começo as sessões de psicoterapia. Ele me disse que eu poderia também desabafar com ele, que não seria nenhum tipo de peso me ouvir, que ele pode me entender. Então comecei a falar absolutamente tudo que me subia ao coração e ele me ouviu pacientemente.
Num dado momento, não sei explicar porque e nem de onde veio a ideia, resolvi perguntar pra ele se, caso tivesse a possibilidade de voltar no tempo, se mudaria o passado de forma a evitar as nossas últimas duas gestações, já que ele saberia que terminaram com a perda dos nossos filhos. E ele respondeu rapidamente que sim, que evitaria acontecer, pois não faria sentido “insistir em tentar sabendo que no final não dariam certo”.
Em conversas anteriores ele já havia se referido as nossas perdas apenas como tentativas malsucedidas. Por algumas vezes eu o corrigi, dizendo que não se tratavam de projetos e sim de pessoas. Que não foram planos malsucedidos e sim a morte dos nossos filhos amados. E ele sempre assentia. Também já perguntei diretamente se a tristeza dele se deve a ter frustrado o seu desejo de um segundo filho, ou se ele sentia que de fato perdeu pessoas que amava. E ele respondia que eram as duas coisas.
Na conversa que tivemos hoje ficou claro que a nossa forma de ver os fatos é diferente. Apesar do amor pelos bebês que perdemos, ele não se submeteria a passar por isso de novo. Isso não desmerece de forma alguma o papel de pai e o lugar dele nesse processo. Deve ser mesmo muito abstrato para ele, assim como para a maioria das outras pessoas, a vida dos filhos assim, tão no início.
Durante a gravidez do Gael, apesar de participar ativamente de tudo, me acompanhar a todas as consultas e exames, ele confessou que é verdade o que costumam dizer, que ele se sentiu pai de verdade no momento em que segurou o filho no colo pela primeira vez. Mesmo acompanhando tudo de perto, sentindo os chutes e soluços enquanto o Gael ainda estava na minha barriga, acordando de madrugada preocupado em ver que eu não conseguia dormir nas últimas semanas da gestação, apesar de dividir comigo todos os momentos, a existência do filho crescendo no meu ventre não o fez sentir-se pai. A paternidade só chegou pra valer no momento do parto, no contato visual e físico direto com o filho.
Todas essas constatações não servem para menosprezar os sentimentos dele nesse momento e tampouco invalidam a realidade de que ele é sim o pai dos meus 4 filhos. Mas elas servem pra me ajudar a entender o quão estranho pode parecer pra todo mundo essa fase difícil que estou passando.
Se o meu marido, que é o pai dos bebês que se foram, não tem a percepção de que eles foram pessoas, como posso esperar que os outros ao nosso redor entendam os motivos de eu estar tão abatida? Se a minha própria mãe, que teve a experiência de dois abortos, considera a intensidade e duração do meu sofrimento exagerados, o que eu poderia esperar de amigos que nunca passaram por nada parecido?
Não estou decepcionada com o meu marido. Não acho que a maneira diferente de pensar o caracterizem como insensível. Sei que ele está sofrendo por termos perdido os bebês e também por me ver tão fragilizada. Continuo vendo nele o meu parceiro, o pai amoroso, o amigo fiel e o homem maravilhoso que eu amo. Ter uma maneira de pensar e sentir diferente não o desqualifica em nada. Apenas confirma o que eu já sabia e até já mencionei antes, que cada um sente de acordo com suas crenças e vivências.
Passou pela minha cabeça que talvez eu sofra de algum desequilíbrio, que “uma pessoa normal” já teria se recuperado no meu lugar. Já me questionei sobre ter algum outro problema, alguma outra carência que eu esteja canalizando inconscientemente para a situação da perda dos meus filhos. Cogitei a possibilidade de que toda a tristeza que estou sentindo se deva na verdade a ideia fixa de ter outro filho, a algum tipo de obsessão doentia pela maternidade. Mas quando acalmo os pensamentos e me permito analisar de forma mais profunda o meu íntimo, vejo que não é nada disso. Acho que se fosse algum tipo de obsessão, apesar de toda a dor desse momento, eu estaria ansiosa por engravidar de novo. Talvez não me incomodasse tanto ouvir a frase padrão que as pessoas usam pra tentar me consolar – você pode ter outro filho.
Será que estou fantasiando o amor, inventando sentimentos por pessoas que não chegaram a existir propriamente? Posso estar me impondo toda essa dor, criando um martírio que não tem razão de ser? Estaria amplificando a tristeza, prolongando o pesar que eu poderia já ter superado?
Ouvi as mesmas coisas de tantas pessoas diferentes que é impossível simplesmente desconsiderar. Se a maioria das pessoas enxerga a minha situação da mesma maneira e só eu a vejo de forma diferente, talvez a minha visão seja mesmo equivocada. Pode ser que eu esteja distorcendo a realidade, permitindo que a minha cabeça complique o que na verdade é simples. Afinal, o aborto espontâneo nas primeiras 12 semanas é muito comum segundo as estatísticas. Tanta gente passa por isso com tanta discrição que nem ficamos sabendo, porque só eu fazendo tanto barulho, incomodando o meu círculo social com minha apatia, minhas lágrimas e esse olhar constante de velório?
Quando comunicamos a gravidez, todo mundo comemora. É tanta alegria, abraços, beijinhos, parabéns e lágrimas de emoção. Quando perdemos o bebê não há uma tristeza correspondente. As pessoas esperam que você esqueça “isso” o mais rápido possível. Como não enlouquecer com reações tão opostas? Por isso é que a maioria permanece em silêncio e sofre para dentro.
Eu sinto falta de coisas comuns a qualquer gestação, da barriga protuberante, dos seios doloridos, do sono incontrolável e outros sintomas que qualquer gravidez pode ocasionar. Eu sinto o vazio do ventre, o útero oco, o desprezo pelo corpo que não conseguiu cuidar adequadamente das vidas que dependiam dele. A única coisa que supera em intensidade e tamanho essa sensação de vazio é o amor que preenche o meu coração. Sinto meu coração transbordar de carinho e de saudade. Sinto falta do vínculo, daquela coisa inexplicável de conhecer tão bem alguém que nunca vi nem pude tocar.
Laços tão fortes existem entre mãe e filhos que podem parecer até mentira para quem nunca vivenciou. Coisas indescritíveis, como por exemplo a certeza que tive de que era um menino ao olhar o resultado positivo na gravidez do Gael. E assim se repetiu na última gestação, com a minha afirmação sem qualquer sombra de dúvida de que esperava uma menina. Não acredito em adivinhações, premonições e nem simpatias. Mas sei que o meu vínculo com meus filhos é tão forte, que consigo senti-los muito cedo, de alguma forma instintiva, parece até que é um lado animal da maternidade.
Um vínculo assim tão estreito, que é atestado até mesmo pela medicina, com estudos que mostram que tal ligação, se de alguma forma prejudicada, pode ter consequências negativas na saúde emocional e psicológica das pessoas durante a infância com reflexos até a idade adulta*, na minha opinião justifica o amor verdadeiro e incondicional, que acontece no coração materno no momento da confirmação da existência de uma nova vida concebida. E o amor permanece mesmo que essa vida seja interrompida e nunca venha a nascer.
Minha conclusão de tudo isso é que eu não sou louca, não tenho um desequilíbrio que me leve a buscar inconscientemente todo esse sofrimento. A minha reação às perdas é diferente das reações de outras pessoas, mas isso se fundamenta no profundo amor que sinto pelos meus filhos e na força do vínculo que tenho com eles. As outras pessoas não são insensíveis só porque não conseguem entender meus sentimentos. Simplesmente por não termos vivido as mesmas experiências, somos todos diferentes e ponto. Também concluí que não preciso me preocupar em atender as expectativas dos outros em relação ao tempo que preciso pra me reconstruir. Vou me permitir viver um dia de cada vez, sem levar em conta as cobranças, me atentando mais ao que eu preciso em cada momento do que às expectativas dos outros.
*PIONTELLI, Alessandra. De Feto a Criança: Um Estudo Observacional e Psicanalítico. Tradução Joanna Wilheim, Nicia Lyra Gomes e Sonia Maria de Godoy. Rio de janeiro, Ed. Imago, 1992.
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